-Já não acha que está tarde de mais?
-Pra que? Amanhã é sábado.
-Existem pessoas que tem a função de pais, entende? E esses ''pais'' se preocupam quando sua filha fica mais tempo fora de casa do que deveria. - Alicia falou com sarcasmo.
Os pais de Alicia em geral eram muito protetores com ela: tinham receio de qualquer amizade nova ou pessoa desconhecida que a filha encontrasse e se apegasse muito, ou até qualquer desejo que lhes parecesse estranho ou além de seu raciocínio do que seria o futuro de sua jovem filha. Alicia amava seus pais, mas achava que esta grande preocupação se fechava no intuito de ela seguir os passos do pai e se tornar uma pessoa bem sucedida (mais economicamente do que socialmente) e se casar com um homem que fosse responsável e que não fosse um chamado ''vagabundo'', a ponto de sustentar Alicia e suprisse as necessidades dela caso ela mesmo não conseguisse isso.
Antes de Harry, Alicia tinha um namorado chamado Jonathan, que mais parecia um caipira do interior com seu jeito de se vestir e de se arrumar juntamente com seu sotaque estranhamente preocupante para os pais de Alicia (como dito anteriormente, tudo que era além do raciocínio dos dois a respeito de Alicia os preocupavam, e seu namorado do interior não era exceção). Desmond, o pai de Alícia, chamou o jovem para conversar e o amedrontou tanto que no mesmo dia, numa noite fria, Alicia recebeu a seguinte mensagem: ''simto muito mais nao podemos comtinuar jumtos''. Ela havia se apegado ao rapaz de tamanha forma que chorou a noite inteira e só descobriu meses depois que o motivo do término se concentrava na conversa de seu pai com ele, fazendo-a ficar ligeiramente brava a ponto de ignorar seu pai em todos os almoços, jantares e até nas chamadas ''reuniões de família'' que serviam para discutir a vida de todos os integrantes da casa: Desmond, Alyssa, a mãe de Alicia, Alicia e Lina, a pequena gatinha branca como neve de Alicia.
-Entendo o conceito, mas não pratico a ele pra saber disso. - Nia respondeu.
Alicia pensou nas palavras de Nia e concluiu o pior antes mesmo de ela jogar seus pensamentos em sua própria face.
-Se você não entendeu ainda, eu não tenho pais. Nem pai e nem mãe.
Nia ainda estava deitada olhando para o céu escuro estrelado, e algo na sua voz pareceu desvanecer a alegria que ela tinha nas cordas vocais quando saiu correndo junto com Alicia para fugir de Harry.
-Me desculpe, eu não quis...
-Fica tranquila. É poeira. - Ela sorriu, mas o sorriso não parecia ser um sorriso feliz - Até porque quem gostaria de ter uma filha que nem eu? Quer dizer, eu sou uma droga, eu sou uma idiota. - Ela se virou para Alicia. - Eu não culpo eles. Quer dizer, se eu fosse eles eu me jogaria num... - Ela se deu conta de que estava falando mais do que devia sobre sua vida - Foi mal.
Antes de Alicia responder qualquer coisa, Nia se levantou e fez uma expressão irritada antes de chutar uma árvore na sua frente com força.
-Nia? - Alicia a chamou.
-Idiotas, idiotas, idiotas. - Nia murmurava
Sem resposta, ela continuou chutando a árvore ainda com mais força.
-Ei, Nia.
Eu não sou boa de mais pra vocês, não é? Dane-se, eu não ligo. - Mais um murmúrio, desta vez mais alto.
Alicia tinha a impressão de que a árvore cairia ou que Nia quebraria seu pé de tanto chutar a árvore.
-Nia.
-Idiotas, idiotas! - E ela soltou um grito que fez espantar os pássaros e um corvo que repousava sobre um galho de árvore.
Nia parou e respirou ofegante como uma pessoa que usava vários casacos numa tarde quente no horário de pico de uma cidade grande. Ela tirou de perto seu cabelo que havia caído em seus olhos e olhou seriamente para Alicia enquanto ainda se acalmava.
-Foi mal, eu só não... não gosto de falar sobre isso. - Nia olhou para cima - Eu acho que já tá na hora de você ir embora. Seus pais devem estar preocupados.
-É, acho que sim. - Alicia havia ficado assustada com o que ouvira, mas tentou agir de forma natural.
Alicia se levantou sutilmente e sentiu uma leve brisa de frio que fez seus pelos arrepiarem e seu corpo clamar por algo que o esquentasse. Suas articulações chegavam a doer de tanto frio e suas bochechas começaram a enrubescer quanto os ventos do inverno puxaram e seguraram seus cabelos para trás, obrigando-a também a semi fechar seus olhos.
Os galhos das árvores ficaram bambos quando o vento se tornou mais rigoroso, movendo as folhas como se as chicoteasse com uma grande quantidade de força. A lua havia se tornado mais clara e as estrelas brilhavam mais do que brilhavam há dois minutos atrás. Era como se o tempo gelado resolvesse esfriar quando você pretendia tomar a iniciativa de algo, como, por exemplo, eu ir para casa.
Estranhamente, a Nia e o vento se assemelhavam muito em um único ponto: eles eram impulsivos e mudavam seu humor de uma hora para a outra sem que ninguém pudesse perceber que a tempestade estava chegando. Talvez Nia carregasse uma tempestade dentro de si enquanto Alicia carregava uma nevasca. Uma carregava o ódio e a outra a tristeza. Na verdade, o mais triste disso tudo é que ninguém fazia o papel de sol na vida delas; ninguém iluminava a paisagem tenebrosa e ninguém procurou conter os desastres naturais antes que eles aparecessem.
É muito difícil saber o que se passa com as pessoas apenas olhando na janela da alma delas, seus olhos. Da primeira vez que Alicia vira Nia ela jurava que era mais uma pessoa que não dava a mínima para ela, era só uma pessoa que queria ter a realização de ajudar alguém sem se importar com quem estava ajudando. Uma vez Alicia lera em um pequeno livrinho de uma biblioteca chamado ''pequenos minutos de sabedoria'' as seguintes citações: o ego das pessoas são como uma semente; à medida em que ajudam as pessoas elas produzem seu próprio alimento e são aguada pelas pessoas que elas ajudaram, e isto não é errado. Errado é quando a pequena semente se torna um grande coqueiro apenas para que as rosas e tulipas vislumbrem sua altura. Se não for para levar as pessoas ajudarem umas às outras, não tente aparecer. O próprio Senhor verá sua ação e, mesmo você achando que é pequeno, Ele lhe fará grande como um coqueiro numa aparência de tulipa.
Alicia jurava que este pequeno livro tinha um caráter religioso ligado ao cristianismo, mas ela não acreditava em muita coisa. Não era adepta a nenhuma religião. Na verdade, sua religião era sua agonizante e dolorosa tristeza e seu deus eram seus olhos, que de tanto chorar, ela já podia orar para eles pedindo para pararem de inundar seu externo.
-Você quer... sei lá, ir comigo até minha casa ou algo assim? - Alicia fez o convite sem jeito.
-Não, valeu. Eu vou mais tarde. - Nia olhou para a descida de um barranco na frente delas que dava até um rio que estranhamente tinha um aspecto limpo banhado pela luz do luar que abrigava as estrelas. - Fica tranquila, eu conheço essa floresta como a palma da minha mão, sei como me virar. Aliás, acho melhor você pegar o caminho de onde viemos e contornar o rio pra chegar na cidade. É mais rápido e mais seguro pra não encontrar babacas.
-Bem, valeu pelo conselho. - Alicia forçou um sorriso. - Vejo você por aí.
-Se precisar de mim eu estou por aqui. Eu sempre estou por aqui.
Depois de um silêncio constrangedor, Alicia começou a tremer, o que chamou a atenção de Nia.
-É bem frio aqui. - Ela viu sua camisa xadrez jogada no chão e a pegou. - Toma, acho que vai servir pra você. - Ela jogou a jaqueta para Alicia.
-Tem certeza? Você não vai ficar com frio?
-Tenho. E se eu ficar com frio eu não me importo, até gosto de sentir minha pele dura e gelada. - Ela fez uma pausa - Aliás, é também uma confirmação de que você vai ter que voltar aqui pra me devolver essa camisa.
-Torça para que eu não seja uma canalha e roube sua linda camisa xadrez. - Alicia soltou um riso abafado pelos sopros do inverno e vestiu a camisa. - E aí, como fiquei?
-Bonita. Ficou bonita. - Nia tossiu - Quer dizer, você já era, mas você... você me entendeu. Ficou bem. É, ficou bem. Ficou bem em você. - E suas bochechas começaram a ficar vermelhas.
-Bem, até mais então.
Alicia sorriu para Nia, que tornou recíproco o sorriso e ficou a olhando até que ela tomasse o caminho cheio de buracos pelo qual chegaram ao local que estavam situadas.
Muitos discutiam porque Nia gostava do frio, quando na verdade, ela apenas gostava dele sem razão alguma. Gostava de sentir a pele ficar gelada, gostava de sentir alguma coisa que tocasse seu coração e seu externo.
Nia gostava muito de uma poesia de Rubem Alves que uma vez vira:
Amar é ter um pássaro pousado no dedo
Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que,
a qualquer momento, ele pode voar.
Talvez ela tenha se enganado a respeito do poema, já que, se o pássaro lhe cativar e você cativar o pássaro, da mesma forma como ela cativou Alicia secretamente e foi cativada por Alicia, o pássaro não voaria e nem a deixaria. Ele até se deixaria ficar preso numa gaiola sabendo que a todo momento alguém iria aprecia-lo independente de fazer pouco ou muito barulho, independente se fosse um belo pássaro de plumagem esbelta ou não.